sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Balanço trimestral do Clube Arribada


Quase três meses depois do início das aulas, permanecem cerca de 50% dos alunos. Não é fabuloso, mas também não é mau. No Clube Arribada, os alunos não têm avaliação, dependendo a sua permanência exclusivamente da respectiva assiduidade. 
Um Clube extra-curricular, que oferece aulas gratuitas de Ciência Computacional, Programação e Tecnologias da Conservação, mas o que é isto, afinal? Há já três anos que o Francisco desenvolve um programa orientado para as STEM (Science, Tecnology, Engeneering and Mathematics) como introdução à tecnologia e sua aplicação na área da conservação. Sempre num registo muito prático, intercalam-se módulos com e sem computador. As actividades desenvolvidas pretendem ser análogas ao trabalho de campo em que a Iniciativa Arribada está envolvida - neste caso, com os dispositivos de marcação das tartarugas marinhas. Começámos pelo sistema binário e unidades de armazenamento de informação. Mais tarde, entre outras coisas, os alunos aprenderão coordenadas geográficas, posicionamento GPS e sistemas de rastreamento. 
Ao início, as crianças atropelam-se de entusiasmo, enquanto se adaptam a um novo regime de ensino - próximo, interactivo, colaborativo, individualizado. Há que lembrar que as turmas da escola têm mais de 40 alunos e o professor tende a permanecer no quadro a falar apenas para a meia dúzia de alunos que resista à desordem instalada. Impacientes com o dia em que poderão ver e mexer num computador, alguns acabam por desisitir ou ficar de fora por excesso de faltas, apesar dos avisos. Ao chegar o grande dia, formaram duplas de trabalho e a decepção de ter de partilhar o computador rapidamente deu lugar a um espírito de entreajuda, bem como a pequenas competições e desentendimentos próprios da idade.
A sede de aprender é imensa e os desafios enormes, quer pela natural necessidade de adaptação da linguagem, quer pela dificuldade de concentração. Mas é fabuloso ver a sua evolução ao longo do tempo e, sobretudo, a perspicácia com que uns e outros não param de nos surpreender a cada dia.
Pontos altos até agora: as novas parcerias e aulas especiais, sobre a fibra ótica e a velocidade da luz, com a CST - Telecomunicações de São Tomé, e a Skype class para Portugal, com a Park Internacional School. Para o próximo semestre, iniciar-se-ão na programação, geolocalização e espécies ameaçadas, com a tão esperada visita à praia de desova das tartarugas marinhas, enquanto os mais velhos explorarão a sua criatividade dando os primeiros passos em impressão 3D.

domingo, 9 de dezembro de 2018

Um sábado ambiental

Um fim-de-semana diferente, com o projecto Bumbu d'Iê pela preservação do ambiente, promovido pela COOPAPIP - Cooperativa de Apicultores da Ilha do Príncipe - e pela Fundação Príncipe Trust. O projecto, cujo nome significa "abelha da ilha" visa promover a apicultura sustentável, que é como quem diz em equilíbrio com a natureza. 
Sabiam que antigamente (e, infelizmente, ainda hoje) se queimavam colmeias e o respectivo enxame para produzir mel? Eu, confesso, nunca me tinha questionado sobre o processo de colheita, mas não poderia imaginar tal atrocidade. Atrocidade para com as abelhas, que morrem queimadas, e para connosco, que comemos um mel impuro, com cera e abelhas à mistura. A equipa Bumbum d'Iê tem vindo a formar e capacitar os membros da Cooperativa de Apicultores para que possam desenvolver a sua atividade de forma mais cuidada, saudável e sustentável. Com o seu apoio, espera-se vir a produzir o primeiro mel sustentável da ilha do Príncipe; ou seja, o primeiro mel produzido de forma natural, sem queimar abelhas e colmeias. De que forma? Apanhando e transferindo colmeias para caixas Langstroth, nas quais as abelhas constroem os favos em caixilhos de madeira, facilmente removíveis e, sobretudo, sem prejudicar as abelhas.

Mas voltemos ao sábado... A comunidade da Ponta do Sol era o destino e esperava-nos uma manhã de actividades ambientais para envolvimento com a comunidade na conservação da biodiversidade do Príncipe. O programa indicava a realização de inquéritos sobre o conhecimento geral das abelhas e apicultura; uma ligeira palestra e apresentação do projecto Bumbu d'Iê; um filme animado para os mais pequenos e uma futebolada para os graúdos. Contámos ainda com a grande surpresa e participação especial de Martina Panisi, responsável pelo Forest Giants Project, para conservação do Búzio do Obô.
O búzio gigante - de nome científico Archachatina Bicarinata e também designado localmente por “búzio preto” ou “búzio do mato", pelo habitat onde vive - é uma espécie endémica de São Tomé e Príncipe, bastante apreciada pelas iguarias alimentares preparadas com o animal e pelas propriedades terapêuticas da sua casca. Nos últimos anos, tem-se observado um preocupante declínio da população desta espécie, classificada como "vulnerável" pela Lista Vermelha da IUCN, o mais fraco dos estatutos de espécies ameaçadas, e em risco de se tornar "em perigo".
Foi um dia em pleno, de forte envolvimento com a comunidade, conhecimento das suas práticas e preocupações, de grande partilha de conhecimento e experiências, que não podia terminar de melhor forma, com um magnífico almoço. A pouco e pouco, as comunidades vão-se abrindo e acreditando nos projectos de conservação. Todavia, verifica-se uma grande desconfiança na capacitação local, por exemplo no que respeita à gestão da Cooperativa. Alguns mostram uma preocupação pela falta de transparência dos seus pares, alegando inclusive que é cultural e que a gestão devia ser externa. Não será esse certamente o caminho, pelo que há ainda um longo caminho a percorrer, bastante além da formação técnica e ao nível de relacionamento interpessoal.
Parabéns Fundação Príncipe Trust! Viva Bumbu d'Iê!

sábado, 1 de dezembro de 2018

O lado B do paraíso

Após dois meses começam a apertar as saudades de casa. Não do apartamento arrendado que deixei, mas das pessoas, das minhas pessoas, que esforço por integrar nesta odisseia, mas cujas palavras me faltam para transmitir todas estas sensações. 
É verdade que a adaptação foi bastante fácil - não sou de grandes confortos e luxos, adaptando-me rapidamente a diferentes contextos, pelo que quase não senti a escassez de serviços e de tantos bens para que me alertavam os demais. A dupla insularidade relembra-me a viver mais humildemente e em maior coerência com os meus interesses e convicções. Há alguns anos que trabalho na área da sustentabilidade e, a pouco e pouco, vou sentindo necessidade de mudar a minha vida, nomeadamente os meus hábitos de consumo. Sim, porque cresci numa sociedade privilegiada, solidária mas também egoísta, no sentido em que pouco ou nada se preocupava com a limitação de recursos ou a preservação do planeta. Felizmente os tempos mudaram: as crianças ensinam os pais que um simples gesto de separação de resíduos pode fazer a diferença; os adolescentes começam a escolher produtos, marcas e empresas que sigam boas práticas ambientais e sociais; os jovens adultos exploram o empreendedorismo para deixar a sua marca no mundo.
E, quando vivemos num contexto isolado como este - onde a reciclagem per si é ainda muito reduzida, face ao investimento necessário -, a reutilização e recuperação de resíduos ganham maior expressão. Os produtos têm sete vidas, como os gatos, seja nos brinquedos e utensílios do dia a dia seja nos pequenos negócios locais incentivados pelas ONG e líderes comunitários, numa missão conjunta #zerodesperdício. Falei há pouco na alteração de hábitos de consumo... A redução da minha pegada ecológica, como de tantos outros expatriados que por aqui passam, começa por manifestar-se na redução da quantidade de plástico que trazemos para cá, por exemplo, nos produtos de higiene. É incrível como já há alguns anos que ouço falar em champôs em barra e venda a granel, mas a azáfama da vida citadina que levava ainda não me tinha permitido parar para explorar. Hoje, sinto-me mais consciente e responsável, começo a agir em conformidade com o que defendo e isso faz-me sentir bem (sem extremismos, claro;)).
Mas não era sobre isto que vos queria escrever hoje. A minha partilha de hoje reflecte outras preocupações sociais, que me assombram à medida que vou descobrindo e conhecendo as comunidades e suas populações. Neste paraíso natural nem tudo são rosas e a segurança que atrai o turismo não é para todos. Não há criminalidade, é certo, mas  há muita violência entre os locais. Seja em casa ou até mesmo nas ruas, em cadeia, para com as mulheres, os filhos e os cães. São um povo muito aceso e os desentendimentos escalam com facilidade para gritos e agressões. A sociedade é muito machista e a fidelidade é apenas para as mulheres, que devem submissão e respeito aos seus maridos. Embora a poligamia não seja assumida como noutros países, tudo se sabe e os homens nada fazem para esconder as suas atracções e diversões paralelas. Todavia, ai da mulher que ouse sequer olhar para outro homem. 
Por outro lado, o seu calor característico fá-los perder a noção dos limites, ignorando situações de incesto e violência sexual, seja por questões de idade ou ausência de consentimento, seja inclusive por laços familiares próximos. Chamam-lhes "catorzinhas" e parte-me o coração conhecer esta realidade em pleno século XXI.
Como é possível tolerar este comportamento, ainda mais com crianças? Será que não lhes ocorre o respeito pela dignidade humana? Já se ouve, pelo menos em conversa comigo, quem discorde, mas a norma continua a ser esta. Será esta a única forma de organização social que conhecem? Faz-me pensar  em regimes ditatoriais, em que os países estão desligados da sociedade envolvente. Nem sou de causas feministas, mas aqui acredito plenamente na necessidade imperativa da capacitação das mulheres para a interrupção deste ciclo vicioso. Mulheres informadas e valorizadas saberão impor o respeito pela sua condição, educando e formando rapazes e raparigas também eles, por sua vez, mais informados e respeitadores. A capacitação aberta das raparigas e das mulheres como programa social prouz dois efeitos essenciais: primeiro, que elas saibam; segundo, que todos saibam que elas sabem. E assim que o intolerável acaba e as coisas mudam.