sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Balanço trimestral do Clube Arribada


Quase três meses depois do início das aulas, permanecem cerca de 50% dos alunos. Não é fabuloso, mas também não é mau. No Clube Arribada, os alunos não têm avaliação, dependendo a sua permanência exclusivamente da respectiva assiduidade. 
Um Clube extra-curricular, que oferece aulas gratuitas de Ciência Computacional, Programação e Tecnologias da Conservação, mas o que é isto, afinal? Há já três anos que o Francisco desenvolve um programa orientado para as STEM (Science, Tecnology, Engeneering and Mathematics) como introdução à tecnologia e sua aplicação na área da conservação. Sempre num registo muito prático, intercalam-se módulos com e sem computador. As actividades desenvolvidas pretendem ser análogas ao trabalho de campo em que a Iniciativa Arribada está envolvida - neste caso, com os dispositivos de marcação das tartarugas marinhas. Começámos pelo sistema binário e unidades de armazenamento de informação. Mais tarde, entre outras coisas, os alunos aprenderão coordenadas geográficas, posicionamento GPS e sistemas de rastreamento. 
Ao início, as crianças atropelam-se de entusiasmo, enquanto se adaptam a um novo regime de ensino - próximo, interactivo, colaborativo, individualizado. Há que lembrar que as turmas da escola têm mais de 40 alunos e o professor tende a permanecer no quadro a falar apenas para a meia dúzia de alunos que resista à desordem instalada. Impacientes com o dia em que poderão ver e mexer num computador, alguns acabam por desisitir ou ficar de fora por excesso de faltas, apesar dos avisos. Ao chegar o grande dia, formaram duplas de trabalho e a decepção de ter de partilhar o computador rapidamente deu lugar a um espírito de entreajuda, bem como a pequenas competições e desentendimentos próprios da idade.
A sede de aprender é imensa e os desafios enormes, quer pela natural necessidade de adaptação da linguagem, quer pela dificuldade de concentração. Mas é fabuloso ver a sua evolução ao longo do tempo e, sobretudo, a perspicácia com que uns e outros não param de nos surpreender a cada dia.
Pontos altos até agora: as novas parcerias e aulas especiais, sobre a fibra ótica e a velocidade da luz, com a CST - Telecomunicações de São Tomé, e a Skype class para Portugal, com a Park Internacional School. Para o próximo semestre, iniciar-se-ão na programação, geolocalização e espécies ameaçadas, com a tão esperada visita à praia de desova das tartarugas marinhas, enquanto os mais velhos explorarão a sua criatividade dando os primeiros passos em impressão 3D.

domingo, 9 de dezembro de 2018

Um sábado ambiental

Um fim-de-semana diferente, com o projecto Bumbu d'Iê pela preservação do ambiente, promovido pela COOPAPIP - Cooperativa de Apicultores da Ilha do Príncipe - e pela Fundação Príncipe Trust. O projecto, cujo nome significa "abelha da ilha" visa promover a apicultura sustentável, que é como quem diz em equilíbrio com a natureza. 
Sabiam que antigamente (e, infelizmente, ainda hoje) se queimavam colmeias e o respectivo enxame para produzir mel? Eu, confesso, nunca me tinha questionado sobre o processo de colheita, mas não poderia imaginar tal atrocidade. Atrocidade para com as abelhas, que morrem queimadas, e para connosco, que comemos um mel impuro, com cera e abelhas à mistura. A equipa Bumbum d'Iê tem vindo a formar e capacitar os membros da Cooperativa de Apicultores para que possam desenvolver a sua atividade de forma mais cuidada, saudável e sustentável. Com o seu apoio, espera-se vir a produzir o primeiro mel sustentável da ilha do Príncipe; ou seja, o primeiro mel produzido de forma natural, sem queimar abelhas e colmeias. De que forma? Apanhando e transferindo colmeias para caixas Langstroth, nas quais as abelhas constroem os favos em caixilhos de madeira, facilmente removíveis e, sobretudo, sem prejudicar as abelhas.

Mas voltemos ao sábado... A comunidade da Ponta do Sol era o destino e esperava-nos uma manhã de actividades ambientais para envolvimento com a comunidade na conservação da biodiversidade do Príncipe. O programa indicava a realização de inquéritos sobre o conhecimento geral das abelhas e apicultura; uma ligeira palestra e apresentação do projecto Bumbu d'Iê; um filme animado para os mais pequenos e uma futebolada para os graúdos. Contámos ainda com a grande surpresa e participação especial de Martina Panisi, responsável pelo Forest Giants Project, para conservação do Búzio do Obô.
O búzio gigante - de nome científico Archachatina Bicarinata e também designado localmente por “búzio preto” ou “búzio do mato", pelo habitat onde vive - é uma espécie endémica de São Tomé e Príncipe, bastante apreciada pelas iguarias alimentares preparadas com o animal e pelas propriedades terapêuticas da sua casca. Nos últimos anos, tem-se observado um preocupante declínio da população desta espécie, classificada como "vulnerável" pela Lista Vermelha da IUCN, o mais fraco dos estatutos de espécies ameaçadas, e em risco de se tornar "em perigo".
Foi um dia em pleno, de forte envolvimento com a comunidade, conhecimento das suas práticas e preocupações, de grande partilha de conhecimento e experiências, que não podia terminar de melhor forma, com um magnífico almoço. A pouco e pouco, as comunidades vão-se abrindo e acreditando nos projectos de conservação. Todavia, verifica-se uma grande desconfiança na capacitação local, por exemplo no que respeita à gestão da Cooperativa. Alguns mostram uma preocupação pela falta de transparência dos seus pares, alegando inclusive que é cultural e que a gestão devia ser externa. Não será esse certamente o caminho, pelo que há ainda um longo caminho a percorrer, bastante além da formação técnica e ao nível de relacionamento interpessoal.
Parabéns Fundação Príncipe Trust! Viva Bumbu d'Iê!

sábado, 1 de dezembro de 2018

O lado B do paraíso

Após dois meses começam a apertar as saudades de casa. Não do apartamento arrendado que deixei, mas das pessoas, das minhas pessoas, que esforço por integrar nesta odisseia, mas cujas palavras me faltam para transmitir todas estas sensações. 
É verdade que a adaptação foi bastante fácil - não sou de grandes confortos e luxos, adaptando-me rapidamente a diferentes contextos, pelo que quase não senti a escassez de serviços e de tantos bens para que me alertavam os demais. A dupla insularidade relembra-me a viver mais humildemente e em maior coerência com os meus interesses e convicções. Há alguns anos que trabalho na área da sustentabilidade e, a pouco e pouco, vou sentindo necessidade de mudar a minha vida, nomeadamente os meus hábitos de consumo. Sim, porque cresci numa sociedade privilegiada, solidária mas também egoísta, no sentido em que pouco ou nada se preocupava com a limitação de recursos ou a preservação do planeta. Felizmente os tempos mudaram: as crianças ensinam os pais que um simples gesto de separação de resíduos pode fazer a diferença; os adolescentes começam a escolher produtos, marcas e empresas que sigam boas práticas ambientais e sociais; os jovens adultos exploram o empreendedorismo para deixar a sua marca no mundo.
E, quando vivemos num contexto isolado como este - onde a reciclagem per si é ainda muito reduzida, face ao investimento necessário -, a reutilização e recuperação de resíduos ganham maior expressão. Os produtos têm sete vidas, como os gatos, seja nos brinquedos e utensílios do dia a dia seja nos pequenos negócios locais incentivados pelas ONG e líderes comunitários, numa missão conjunta #zerodesperdício. Falei há pouco na alteração de hábitos de consumo... A redução da minha pegada ecológica, como de tantos outros expatriados que por aqui passam, começa por manifestar-se na redução da quantidade de plástico que trazemos para cá, por exemplo, nos produtos de higiene. É incrível como já há alguns anos que ouço falar em champôs em barra e venda a granel, mas a azáfama da vida citadina que levava ainda não me tinha permitido parar para explorar. Hoje, sinto-me mais consciente e responsável, começo a agir em conformidade com o que defendo e isso faz-me sentir bem (sem extremismos, claro;)).
Mas não era sobre isto que vos queria escrever hoje. A minha partilha de hoje reflecte outras preocupações sociais, que me assombram à medida que vou descobrindo e conhecendo as comunidades e suas populações. Neste paraíso natural nem tudo são rosas e a segurança que atrai o turismo não é para todos. Não há criminalidade, é certo, mas  há muita violência entre os locais. Seja em casa ou até mesmo nas ruas, em cadeia, para com as mulheres, os filhos e os cães. São um povo muito aceso e os desentendimentos escalam com facilidade para gritos e agressões. A sociedade é muito machista e a fidelidade é apenas para as mulheres, que devem submissão e respeito aos seus maridos. Embora a poligamia não seja assumida como noutros países, tudo se sabe e os homens nada fazem para esconder as suas atracções e diversões paralelas. Todavia, ai da mulher que ouse sequer olhar para outro homem. 
Por outro lado, o seu calor característico fá-los perder a noção dos limites, ignorando situações de incesto e violência sexual, seja por questões de idade ou ausência de consentimento, seja inclusive por laços familiares próximos. Chamam-lhes "catorzinhas" e parte-me o coração conhecer esta realidade em pleno século XXI.
Como é possível tolerar este comportamento, ainda mais com crianças? Será que não lhes ocorre o respeito pela dignidade humana? Já se ouve, pelo menos em conversa comigo, quem discorde, mas a norma continua a ser esta. Será esta a única forma de organização social que conhecem? Faz-me pensar  em regimes ditatoriais, em que os países estão desligados da sociedade envolvente. Nem sou de causas feministas, mas aqui acredito plenamente na necessidade imperativa da capacitação das mulheres para a interrupção deste ciclo vicioso. Mulheres informadas e valorizadas saberão impor o respeito pela sua condição, educando e formando rapazes e raparigas também eles, por sua vez, mais informados e respeitadores. A capacitação aberta das raparigas e das mulheres como programa social prouz dois efeitos essenciais: primeiro, que elas saibam; segundo, que todos saibam que elas sabem. E assim que o intolerável acaba e as coisas mudam.

sábado, 24 de novembro de 2018

Trust | Conservação e Sustentabilidade

A Fundação Príncipe Trust é a ONG local que me adopta indiretamente nesta minha missão, enquanto principal parceiro do projeto. E sim, digo "adopta" porque a ligação entre os diversos colaboradores, estrangeiros e locais, tem a força e o carinho dos laços familiares com que fui educada.
Originalmente, a Fundação foi criada pela HBD - principal empresa hoteleira da ilha, pertencente ao sul africano Mark Suttleworth, que se dedica ao turismo sustentável. Hoje, sem perder o apoio e ligação ao seu fundador, opera de forma independente, reunindo uma panóplia de apoios e patrocínios, consoante a área de actividade. 
Surgiu com o objectivo de preservar a biodiversidade da ilha, desenvolvendo inúmeros projectos de conservação marinha e terrestre. Procurando atingir o equilíbrio entre a natureza e o Homem, a Fundação Príncipe Trust visa promover o desenvolvimento económico e social das comunidades do Príncipe, de forma a capacitá-los para uma gestão de recursos mais eficiente e sustentável.
Conservação das tartarugas marinhas, promoção de apicultura sustentável, educação e sensibilização ambiental, identificação e categorização de espécies ameaçadas ou valorização de resíduos através da produção de joalharia com peças de vidro são algumas das inúmeras iniciativas que potenciam o desenvolvimento das comunidades locais. 

Esta semana, tive oportunidade de  conhecer com maior detalhe os resultados do projecto "Omali Vida Nón" - que quer dizer "o mar é a nossa vida" e se destina à conservação das áreas marinhas protegidas e fortalecimento das comunidades piscatórias -, acompanhando o Dário Pequeno Paraíso nas visitas de campo para elaboração de um pequeno documentário sobre o projecto. 

Tradicionalmente, os homens são pescadores e as mulheres palaiês (vendedoras), mas não necessariamente em parceria. Muitas vezes, senão na maioria dos casos, as mulheres compram o peixe aos seus maridos para venderem, directamente, fresco ou seco e salgado. Algumas perdem inclusive dinheiro neste processo - o que causa alguma confusão se pensarmos em termos de economia familiar -, mas é assim que a sociedade está organizada. Um dos principais impactos do projecto, que terminará em breve, foi, para mim, a promoção de ideias comunitárias, para lá da pesca,  para o desenvolvimento de fontes alternativas de sustento, das quais brotam dois negócios de sucesso: a bijuteria da praia Burras e os sabonetes artesanais da praia Abade. 
A minha aprendizagem da semana não fica, porém, por aqui... O Dário é um rapaz são tomense, que cresceu em Portugal e regressou há menos de meia dúzia de anos. Aliás, na verdade não regressou, mas anda agora entre cá e lá. Hoje, excelente fotógrafo e videógrafo, reconhece o privilégio em que  cresceu - sobretudo  quando  comparado  aos  seus pais -, mas com um crescimento bastante desafiante em vários aspectos. Uma história de vida incrível, que não me cabe naturalmente a mim contar, mas que estou extremamente grata por ter merecido tal confiança. Obrigada Dário, pelas partilhas, discussões e por tudo o que, mesmo sem querer e sem te aperceberes, me ensinaste. Estou inquieta para ver o resultado deste documentário. Sucesso!



sábado, 17 de novembro de 2018

Parque Nacional do Obô

Há seis anos, o Príncipe foi classificado como área protegida pela UNESCO e Reserva Mundial da Biosfera. Para explorar esta imensidão e beleza natural, encontramos julgo que sete Trilhos da Biosfera, que podemos explorar - preferencialmente acompanhados de guia, de forma a descobrir as suas maravilhas e a melhor preservar esta preciosidade. 
Estreei-me no #7 Oquê Pipi, um dos mais curtos e de menor exigência física, apesar de alguns trajectos mais desafiantes, que termina na fantástica cascata que lhe dá o nome. Terão de vir conhecer, pois as minhas fotografias não lhe fazem a devida justiça.

O caminho é incrível, surpreendendo-nos a cada passo pela densa floresta adentro. Beneficie da orientação do simpático Yodiney Santos, coordenador terrestre da Fundação Príncipe Trust e guia certificado, mais conhecido por Yodi. As enormes raízes do Oca, que não cabem no solo, estão por todo o lado, criando deliciosos recantos e protegendo outras espécies. O Yodi apresentoi-me várias espécies endémicas da região e outras tantas introduzidas pelo Homem, mas que nunca tinha visto até então. 

Apreciando sobretudo a paz e tranquilidade que proporciona, confesso que  não sou grande conhecedora da natureza, mas é impossível  ficar indiferente à paixão com que o Yodi partilha o seu conhecimento. Folha tatuagem, 'mulher portuguesa' ou 'não me toques' - divertido feto que se fecha ao tocar nas suas folhas -, pau água e uma dúzia de vagas e pequenos frutos cujo nome não lembro, são algumas das belezas que me chamaram a atenção, mas tenho a certeza que me escaparam outras tantas, pelo que terei de voltar para aprofundar a lição. Além do mais, há pelo menos mais seis trilhos a explorar! Aqui vou eu...



sábado, 10 de novembro de 2018

Praias de areia branca

Ainda não escrevi sobre o clima, que me tem inquietado bastante. Os 24°C indicados no termómetro parece-me 30°C, embora a humidade não seja tão forte quanto esperava. Já a chuva é mais que muita e abundante, não como as monções asiáticas que conheço. Aqui, não podemos deixar que a chuva condicione os nossos passos, ou não sairíamos de casa. Chove frequentemente a tarde toda ou até mesmo o dia inteiro.

Todavia, consegui finalmente usufruir por completo deste paraíso que me acolhe e explorar um pouco das belíssimas praias que me rodeiam, de areia branca e água cristalina. Algo que me transcende numa ilha vulcânica como esta é precisamente a cor da areia... Ainda estou para descobrir a origem.
Cada uma com a sua particularidade: a sofisticação do Bom Bom e Santa Rita, a floresta envolvente da praia Abelha, a simplicidade da praia Boi, entre outras tantas. Mas a que de facto me conquistou, e me quebra a saudade da apaixonante costa alentejana, foi a praia Banana, junto à Roça Belo Monte. Ainda estou para decifrar o quê, mas há qualquer coisa de mágico neste lugar, que me encantou desde que o avisei do miradouro acima...A praia é pequena, rodeada de coqueiros, com uma série de áreas próprias para snorkeling. Do Belo Monte pode ainda requisitar-se a utilização de caiaques, individuais ou duplos, e passear até ao hotel abandonado na praia Macaco. 
Apesar da reduzida dimensão da ilha, os acessos não são faceis, pelo que há que planear o dia em função da exposição solar. Descubro que a minha localização favorita deve ser melhor aproveitada pela manhã, embora me delicie com os últimos raios de sol da tarde numa rocha no meio do mar...
E por fim, nada como terminar o dia com um revigorante cocktail entre amigos, no miradouro do Belo Monte, com uma das melhores vistas sobre o por do sol. 
Do que estão à espera? Aventurem-se e venham conhecer este tesouro ainda meio escondido, que, julgo, não fica indiferente a ninguém que por cá passe.

sábado, 3 de novembro de 2018

Na sombra da Colonização




Por entre ruínas e a verdejante imposição da natureza que tomou posse do espaço, descobre-se o surpreendente tesouro arquitectónico das grandes roças de São Tomé e Príncipe, que representavam a grande base económica de ambas as ilhas até à independência. 
No Príncipe, parece que existiam quatro grandes unidades agrícolas - Sundy, Porto Real (que, segundo consta, produzia o melhor óleo de palma da ilha), Terreiro Velho e Infante - as quais englobavam quase duas dezenas de outras roças: São Joaquim, Paciência, Belo Monte, Nova Estrela, Santo Cristo, Montalegre, Azeitona, Santa Rita, Gaspar, Bela Vista, Nova Cuba, Ponta do Sol, Abade, Infante, Maria Correia, Lapa, entre outras... Ainda não conheço bem a sua história, mas apesar das particularidades individuais, julgo poder descrevê-las como uma enorme unidade agrícola com casa principal ou senhorial, sanzalas (casas dos trabalhadores), armazéns e outros edifícios de apoio à produção e um hospital (não sei se em todas ou apenas nas de maior dimensão. Em muitos casos, as roças principais eram suportadas por outras secundárias, espalhadas pela ilha.
Entre si, estendia-se um sistema ferroviário, que ligava e abastecia as roças principais e suas dependências. As estruturas são imponentes, de uma beleza incrível, que parte a alma ver ao abandono. Consta que, após a sua nacionalização, criaram-se cerca de 15 unidades agrícolas para dar continuidade à produção. No entanto, estas foram novamente deixadas ao abandono. Apesar de alguns esforços para a sua recuperação, a maioria permanece em decadência ano a após ano, talvez por dificuldades de gestão ou por afirmação/revolta. 
O peso do colonialismo faz-se sentir em conversa com algumas pessoas, as que se atrevem a falar sobre o tema. Achamos que a escravidão foi abolida no séc. XIX, mas parece que o trabalho forçado permaneceu até à nacionalização das roças, em 1974. Ainda assim, as opiniões divergem: há os que falam, naturalmente com mágoa, de avós em situação de escravidão, ao mesmo tempo que outros referem-se a tempos de trabalho árduo mas certas condições garantidas. Arrepia ouvi-los falar, não consigo imaginar o que pode ser crescer sem liberdade ou opção de escolha.
Por outro lado, entre as áreas da conservação e do turismo, ou mesmo pelas ruas, há uma admiração estranha pelo estrangeiro, uma submissão inerente que me faz bastante confusão. Como se os estrangeiros fossem mais aptos e melhores. Se nalgumas situações se verifica - sobretudo por maior qualificação e domínio de língua estrangeira -, acredito que a troca de experiências e conhecimentos é recíproca e igualmente rica para ambos os lados. Sabemos coisas distintas e aprendemos e crescemos em conjunto.

sábado, 20 de outubro de 2018

Clube Arribada | let's the classes begin

Decorridas as eleições, iniciámos finalmente as aulas de Ciência Computacional e Tecnologia da Conservação no Clube Arribada. Trabalhamos com uma das escolas de 2.º ciclo de Ensino Básico da cidade, Santo António II, por limite de capacidade e porque as crianças das roças e comunidades sofrem de maior dificuldade de transporte e, consequentemente, de assiduidade. 
Ao chegar à escola, são vários os desafios: a excessiva dimensão das turmas (entre 40 e 50 alunos); a escassez de professores e auxiliares, que dificulta a gestão da energia própria da idade; professores que chegam tarde, leccionando meio tempo de aula ou o que dela restar... E, para meu grande choque, as turmas organizam-se por idade. Por exemplo, os 5º A e B são compostos por crianças de 9 e 10 anos, o 5 ºC por crianças de 11 anos (que já perderam um ano) e por aí fora, por forma a compor turmas mais homogéneas. Ora, apesar de perceber os motivos inerentes a tal decisão, não deixa de me fazer confusão esta "receita para o fracasso" dos alunos com maiores dificuldades de aprendizagem. A influência e convívio entre diferentes níveis de conhecimento estimula o desenvolvimento da criança, pelo que me parece demasiado condenatório à partida. 
O sistema educativo parece-me bastante preocupante. Até há uns anos atrás, não havia ensino secundário no Príncipe e nem todos tinham possibilidade de ir para S. Tomé terminar o liceu. Hoje, essa limitação surge apenas ao nível do ensino superior. Mas, ainda assim, o nível de ensino parece deixar muito a desejar quando parece que basta terminar o ensino secundário para estar apto a ensinar uma ou outra disciplina. Há uma falta muito grande de professores e, apesar do subsídio de isolamento para incentivo à deslocação de funcionários públicos de S Tomé, não é fácil captar colaboradores para o Príncipe. As cooperações internacionais, nomeadamente com o Instituto Marquês de Valle Flôr, reforçam o corpo docente ao nível do ensino secundário. Contudo, os jovens chegam muitas vezes com uma grande falta de bases, sendo mais difícil a sua integração e acompanhamento da matéria.
Enfim, temos 16 lugares na sala e, portanto, desafiámos duas turmas de 5.º ano a participar no clube, dividindo cada uma delas em três pequenos grupos. Damos aulas práticas e procuramos desenvolver uma aprendizagem mais informal. As aulas são gratuitas, extra-curriculares e opcionais, não há sistema de avaliação e a permanência no clube é garantida pela assiduidade do aluno. Tentamos envolver os pais ou encarregados de educação dos alunos, para que os libertem das tarefas domésticas para poderem participar no clube e não faltarem sem justificação.
Recebemos 80 novas inscrições com grande entusiasmo, sobretudo por causa da utilização do computador - a que muitos só têm acesso no 10.º ano de escolaridade, na aula de TIC - que o professor Rafael se esforça por tornar apelativas e dinâmicas, apesar de só ter 4 computadores operacionais para 50 alunos... O Francisco e eu estamos a pensar numa estratégia para melhorar estas condições, espero em breve ter novidades. :)

sábado, 13 de outubro de 2018

Tira Foto

Seja pelas ruas da cidade de Santo António ou pelas comunidades adentro, embora um pouco mais reservados, a energia das pessoas é contagiante. Este jeito familiar, que faz lembrar as aldeias de Portugal, onde todos se conhecem e cumprimentam, acolhe-me tão naturalmente e faz-me sentir em casa quase que instantaneamente. Um "olá" aqui, um "boa tarde" acolá, os diálogos vão-se desenvolvendo apesar do hábito de poucas palavras: "como?" quer dizer "como está?"; "tudo" é "tudo bem"; "ainda" corresponde a "ainda não"...

As crianças correm atrás de qualquer interacção e o seu sorriso meigo rouba rapidamente o nosso coração, com um automático "tira foto" ou, nas mais ousadas, "dá-me doce" ou "dá lapiseira" - fruto do crescente turismo que, confesso, me faz alguma confusão. Não é por mal, bem sei, mas sem nos apercebermos, vamos estimulando pequenos actos de "mendigagem" e facilidade de estender a mão. Se ensinamos os nossos filhos a trabalhar para conquistar as coisas, porque não o fazemos com os filhos dos outros? 

Apelo a todos os meus amigos e familiares, que, nos seus actos altruístas e generosos, para cá ou qualquer outro sítio, envolvam por favor as entidades competentes, organizando doações com quem está no terreno - ONG, paróquia, Santa Casa da Misericórdia, entre outras - e conhece a realidade local. Ajudemos, claro, mas ajudemos a fazer crescer e desenvolver o país, ao invés de incentivar o "assistencialismo", que muitas vezes também é necessário, mas deve ser feito de uma forma organizada. Desculpem o  pequeno sermão, "mix feelings" ainda da adaptação à realidade local ;)

sábado, 6 de outubro de 2018

Behind enemy lines

Cheguei em plena campanha eleitoral, em eleições nacionais e regionais. É, por isso, um tempo bastante animado, de esperança, promessas e festa:
. Esperança q.b., pois não sinto grande envolvimento ou até interesse por parte da população (têm opinião, que manifestam de forma bastante acesa, mas não conhecem as intenções dos candidatos; simpatizam com um em detrimento de outro, mas se este outro ganhar também está bem...).
. Não consegui aceder propriamente aos programas eleitorais, mas fala-se nas ruas - sobretudo no banco da má língua, como é conhecido o banco da praça central, onde as pessoas se juntam às mais variadas horas para apanhar boleia, proteger do sol ou observar o ritmo da cidade - em melhorar as estradas, as redes de acesso a água e energia. Infelizmente, nada sobre educação ou saúde, que tanto escasseiam por aqui... Certamente que essas preocupações existem, simplesmente não predominam na vida diária das pessoas.
. Festa à boa moda africana, porque tudo é motivo para música e dança. Comícios, visita às comunidades, carros de campanha anunciam as atividades pelos bairros por onde passam. A juventude alista-se para participar na festa, vestida a rigor, mostrando o seu ritmo, entretendo e desafiando todos à sua volta.



Na Região Autónoma do Príncipe há três candidatos, mas a disputa dá-se sobretudo entre dois: o atual líder - que termina o seu terceiro mandato consecutivo - e um grande empresário da ilha. O atual presidente termina o terceiro mandato, estando no poder há, portanto, 12 anos. O povo está contente com o seu trabalho, mas acredita que é tempo de mudar e passar o testemunho. Diz-se, no tal "banco da má língua", que se rodeou de mais interesseiras e menos interessantes pessoas, que se acomodam à sua posição.
Eu, sinceramente, torço (interesseira e secretamente) pela menor alteração possível, apenas e só por questões operacionais do meu projeto. Preciso reunir com as secretarias de Assuntos Sociais e Educação, pelo que qualquer alteração implicará o atraso no início das aulas do meu projeto. Seja o que tiver de ser, para e pelo Príncipe.

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Onde é o paraíso


Foi no Golfo da Guiné, na linha vulcânica dos camarões, a 140 km de São Tomé, que encontrei a paradisíaca ilha do Príncipe, inicialmente denominada de ilha de Santo Antão. 142km2 de uma riqueza sem igual e várias comunidades num total de 8 mil habitantes para conhecer nesta nova odisseia.
Parto numa experiência educativa, de aplicação da tecnologia à conservação ambiental, para crianças dos 10 aos 12 anos de idade. Parece que vim para ensinar, mas certamente voltarei com uma bagagem maior do que a que trouxe.
Cheguei há menos de uma semana... partilho as primeiras impressões:
- Não tem savana nem animais grandes, como a África que conheço, mas uma paisagem densa verdejante, que constitui a primeira reserva mundial da Biosfera da UNESCO.
- A cidade de Santo António é bastante pequena, a rotina faz-se a pé tranquilamente, mas os acessos e transportes para fora da cidade são mais complicados. A chuva frequente e a falta de manutenção das estradas dificulta a condução aos tradicionais motoqueiros.
- As pessoas são alegres, puras e de uma hospitalidade imensa. As caras novas saltam à vista facilmente e a curiosidade fala alto para saber o que a "brrranca" (carregam nos "erres" de uma forma muito peculiar) vem para cá fazer.
- Os multibancos só aceitam cartões locais e, à excepção de um ou outro hotel de luxo, as transacções são todas em dinheiro. Numa ilha ainda pouco virada para o turismo, a dupla insularidade faz-se sentir nas mais pequenas coisas, como o tomar um simples expresso, manteiga a 5€ no supermercado, entre outros.
- A comida é muito boa, de forte influência cabo verdiana (como 80% dos habitantes da ilha), embora, contrariamente ao que a fertilidade do solo faz esperar, sem grande variedade de fruta e legumes.
- Há música e festa por todo o lado, sobretudo agora (plena campanha eleitoral).
Foi uma semana rica, atípica, cheia de sensações, percepções e sentimentos para digerir...
Sem pressas, leve-leve, como manda o lema da ilha:)

Contudo, se se quiserem antecipar ou aprofundar a minha escrita, convido-vos a lerem os contos "Fyá Xalela", da magnífica Olinda Beja, que me ofereceu a minha antiga equipa da Sair da Casca. Queria ter lido no verão, antes de vir, mas ainda bem que não o fiz. Exímia contadora de histórias por excelência, a autora envolve-nos a cada página neste legado tão precioso e singular  que lança para o mundo. A sua descrição sensorial e realista aproxima qualquer leitor dos personagens, de tal forma que nos apropriamos da história como se fosse a nossa. Consequentemente, recomendo que prolonguem a leitura ao longo dos tempos, não porque a escrita seja pesada, antes pelo contrário, mas para que se possam deixar levar pelo universo criado e relacionar com os personagens apresentados. Os mais curiosos poderão ainda  deliciar-se com os sábios tradicionais provérbios, escritos em Lung'Iê (língua da ilha), que antecipam cada conto.